Hoje olho para este espelho e sinto saudades da minha última visita à cidade dos sonhos
A que realizei montado em cavalos alados
Desta vez o pássaro dos sonhos tinha se transfigurado em pégasus galopantes
Pois havia muita urgência, e era preciso a transfiguração mais veloz da beleza para que a viagem durasse o tempo de um piscar de olhos
Apesar da grande fugacidade das imagens que não chegavam a se completar perante meus olhos de "menino-gente", era possível ver que em nuvens os pégasus pisavam com uma suavidade aparentemente impossível
Havia muita urgência no bater daquelas asas
Ainda que tão alvas como o mais belo amanhecer, eu conseguia ver a ansiedade ritimando o cavalgar daquelas lindas projeções do grande pássaro dos sonhos
Dividido em tantos para mostrar a grandeza de ser um em muitos
Enfim... Quando finalmente as imagens começaram a desacelerar
Eu percebi que estava me aproximando de uma linda ilha de espelhos
O mais belo era o contraste do mangue, ele a cercava por todos os lados
E era rodeada por grandes caranguejos
De tamanhos tão assustadores como nunca antes vira na vida
Eu pude ver como agora o meu reflexo pousar
O grande pássaro dos sonhos voltara a sua condição anterior
E me escoltava para o centro daquele quadrado de espelho, aparentemente sem razão.
- Qual o sentido desse espelho no meio do mangue?
- A beleza não precisa fazer sentido... Você não percebe que dessa forma o céu se aproxima um pouco do chão?
- Verdade. Mas é injusto que o mangue também não seja refletido lá em cima, afinal a beleza dele é menos aceita, e talvez fosse possível vê-lo refletido em alguma nuvem, respeitaríamos mais a sua razão de ser.
- A sua sabedoria e capacidade de ver a real natureza das coisas é que te faz meceredor das cidade dos sonhos.
- Não sou sábio... Não vejo a razão desta ilha. Por que estamos aqui?
- Você já viu... apenas não enxergou... Olhe para baixo. O que está vendo?
- Nós dois refletidos no espelho.
- Olhe além de nós, deixe de se enxergar e encontrará o sentido de ser reflexo.
Naquele instante eu percebi que enxergar além de nós é algo que ao primeiro olhar é impossível, mas basta um pouco de generosidade e um mundo inteiro se constrói em nossa frente. E foi assim, de repente a minha imagem desapareceu no espelho e um grande palácio de espelhos emergiu erguendo a ilha. A transfiguração durou apenas o tempo do meu espasmo de surpresa... Rapidamente um reino inteiramente feito de espelhos cobriu o mangue, cercado por muros brancos, tão grandes que seria impossível qualquer criatura viva entrar sem autorização.
Um papagaio de um verde intenso, rompe a imensidão branca arquitetada à nossa frente e se torna a segregante imagem da paisagem. Estendi o braço e ele pousou.
- A rainha espera ansiosamente por vocês.
Fomos conduzidos para dentro do palácio, o palácio que já era grande se ampliava ainda mais com os espelhos. Passamos por várias salas até finalmente sermos colocados diante da rainha. Tratava-se de uma senhora de olhar intrigante, não era possível olhar neles sem que me visse. Seus olhos eram também de espelho. Por isso tornava-se difícil olhar profundamente naquela rainha.
- Você é o menino-gente com olhos de poema, responsável por grandes transformações na cidade dos sonhos?
- Eu não penso ser responsável por nada.
- É na falta de pretensão que está o segredo da mudança... Quando menos pensamos afetar as coisas, mais as atingimos intensamente.
- Eu creio, majestade, que não possua nenhum poder para tanto, talvez uma rainha como a senhora possa ter dimensão do que causa, mas eu... Eu não sou nada.
- Esse é o maior equívoco... É preciso que se inverta o olhar para que se enxergue o verdadeiro poder. O que são os espelhos senão uma forma de se enxergar o poder?
- É por isso que tem tanto espelhos? Para se sentir poderosa?
- Os meus espelhos não servem para mim... Veja os meus olhos, o que eles refletem?
- A minha imagem.
- Pois bem... Como poderia eu enxergar a mim, se os meus olhos servem para que a imagem dos outros exista?
- Então não consegue se enxergar Rainha...
- Liah...
- Ilha... Até o seu nome é uma inversão da palavra "Ilha".
- O que quer dizer com isso?
- Liah é ilha de forma desordenada não é?
- É.
- Algo me diz que o seu nome não é a única coisa desordenada para parecer outra coisa por aqui.
- Se eu pudesse refletir os seus pensamentos agora, certamente leria uma porção de coisas que sempre hesitei ler.
- Mas um dia é preciso refletir a verdade. E é contraditório que uma Rainha de um Palácio de Espelhos tenha medo da verdade. A verdade não combina com espelhos.
- Prossiga.
- Não vejo razão em se morar em uma ilha de espelhos... Não consigo entender qual o sentido de ser ilha, habitar um mundo branco quando se pode ter conexão com tantas coisas coloridas. Posso fazer uma pergunta?
- Não tenho como impedir a voz sincera do teu coração.
- Foi por solidão?
- Difícil responder se a solidão é a construtora dos nossos palácios quando nunca se teve outra condição adversa na vida. Sei apenas que essas paredes multiplicam a menor presença que exista, os meus objetos viram muitos outros objetos e eu sinto como se houvesse companhia.
- E quando foi que inverteu os seus olhos, empurrando para dentro a parte mais sensível e trazendo para forma essa proteção que não permite com que se enxergue?
- É... Realmente você é a excessão necessária a qualquer mundo. Eu não sei... Talvez tenha sido alguma dor dessas que uma vez é o suficiente para que corrijamos a vida toda. Pode ver que não tenho muitas respostas para o que sou... Mas começo a entender que os meus espelhos refletem muito mais do que as aparências que tanto tentei usar como proteção.
- Você não precisa refletir nada que não seja espiritual... Traga o reflexo da sua alma para fora e as pessoas serão espelho dela. É preciso fazer uma inversão nas letras do seu nome, dos seus sentimentos, da suas motivações, para que a felicidade seja a sua imagem rebatida.
Neste instante eu vi que havia realmente feito uma transformação, a rainha estava certa quando disse que tocar não é uma questão de desejo... Os olhos de espelho da rainha se voltaram para dentro e eu podia ver a sua alma... Finalmente o seu poder ofuscava todos os espelhos, que pararam de refletir o material. Agora a Rainha aparecera quebrando qualquer imagem sem propósito.
Eu voltava para casa feliz... A compreensão daquilo que eu projeto diante do espelho se tornou muito mais clara para mim.
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